Santo teve documentos
destruídos pela Igreja, mas suas lendas resistiram ao tempo.
Dizem que ele resistiu a
venenos, ressuscitou 300 mortos, derrotou um dragão. Dizem. Porque a existência
de São Jorge é, de longe, uma das mais questionadas do cristianismo. Os
documentos que comprovariam sua trajetória foram destruídos ao longo de dois
séculos pela própria Igreja, temorosa de que a fama do mártir pudesse
obscurecer até a de Jesus. Para especialistas ouvidos pelo GLOBO, a tentativa
de apagar a biografia do santo teve efeito inverso — em vez de retirá-lo dos
altares, fortaleceu a sua devoção. A imagem do guerreiro sobre um cavalo conquistou
de cruzados ingleses a escravos africanos, e o reconhecimento final veio nos
últimos 15 anos, quando ele ganhou definitivamente o crédito de “santo de
máxima importância”.
— São Jorge assumiu uma aura
importante por ter resistido à tentativa da Igreja de eliminá-lo. Isso surtiu
um efeito contrário: estimulou o seu culto — conta Ivan Manoel, professor do
Departamento de História da Unesp em Franca. — A figura de um guerreiro contra
o dragão é a síntese da batalha do Bem contra o Mal. Ele é o santo das
dificuldades, o que todo mundo sofre de alguma forma.
No
século passado, aliás, até o status de santo, obtido em 494, foi ameaçado.
— Como não havia uma
comprovação científica dos milagres de São Jorge, em 1960 sua celebração foi
redefinida pelo Papa João XXIII como apenas uma comemoração — destaca Malga di
Paula, autora de “Meu São Jorge da Capadócia” (editora Caras), que foi à
Turquia 25 vezes para resgatar as histórias do santo. — Nove anos depois, Paulo
VI afirmou que o dia 23 de abril seria apenas de memória facultativa, alegando
que a existência de São Jorge não era claramente comprovada. Foi só em 2000,
com João Paulo II, que ele recuperou o status de figura de “máxima importância”
na Igreja.
RESISTÊNCIA
AO PAGANISMO
Os mistérios sobre os rumos
de São Jorge começam no berço. A versão mais aceita é a de que ele nasceu no
ano 280, na Capadócia, um refúgio cristão na atual Turquia. Mudou-se com a mãe
para a Palestina na adolescência e se alistou no Exército romano. Na volta de
uma guerra no Egito, questionou a perseguição aos cristãos comandada pelo
coimperador Galério, que queria forçar os militares a se converter ao
paganismo. Foi preso e torturado. Passou por uma roda em que os músculos são
esticados ao máximo, chicoteado e, depois, teve as feridas queimadas. Terminou
degolado no dia 23 de abril de 303. Sua tumba está até hoje em uma igreja na
cidade de Lod, em Israel.
Até perder a cabeça, porém,
o santo teria passado por outras provações — ao menos é o que dizem as lendas.
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— Entre cada tortura, o
imperador lhe perguntava se ele renunciava à sua religião. São Jorge não cedia
e, diante de sua perseverança, muita gente se converteu ao cristianismo —
destaca Marília Lamas, autora do livro “São Jorge: a saga do santo guerreiro” (editora
Inspira), que será lançado no dia 15. Até o feiticeiro que tentou envenená-lo
mudou de religião.
Diversos documentos sobre o
santo começaram a surgir a partir do século VI. No entanto, em 680, um concílio
em Constantinopla avaliou que parte das histórias sobre os mártires eram
apócrifas, e que estas narrativas poderiam levar os fiéis à criação de cultos e
seitas. Muitas mensagens foram destruídas, inclusive possíveis relatos sobre a
origem de São Jorge.
— As histórias eram
recheadas de fábulas. Algumas diziam que São Jorge ressuscitou 300 mortos. Ele
parecia mais grandioso do que Jesus — diz Malga.
Ainda
assim, no século XI, surgiu mais uma lenda sobre São Jorge.
— Ele teria salvado a filha
de um rei de ser devorada por um dragão que vivia dentro de um lago na cidade
de Selem, na Líbia. — assinala Marília. — O cavaleiro conseguiu domar a fera e
a levou para o povo assustado. Disse que a mataria se todos se convertessem ao
cristianismo. Naquele dia, todos foram batizados. A história foi incluída 200
anos depois na “Legenda áurea”, uma coletânea de biografias de santos, que até
hoje é uma referência no estudo da religião. Por muitos anos, ela foi mais vendida
do que a própria Bíblia.
Além do dragão, São Jorge
teria socorrido os cavaleiros da Primeira Cruzada em 1098, em uma batalha
contra os muçulmanos em Antioquia (situada na atual Turquia). Em 1190, na
Terceira Cruzada, o rei Ricardo Coração de Leão nomeou o santo como protetor de
uma das expedições e desenhou uma cruz vermelha no uniforme dos militares, “a
cruz de São Jorge”, que hoje está presente na bandeira da Inglaterra. Do
território britânico, o santo se espalhou para o resto da Europa, inclusive
Portugal, onde “São Jorge!”, tornou-se um grito de batalha no século XIV.
UM
DISFARCE PARA OGUM
E aí foi a vez do Brasil.
Aqui, São Jorge chega como o “santo estatal”, imposto pelos conquistadores aos
índios e escravos africanos. Mas os negros logo deram um jeito para que a
umbanda e o candomblé resistissem na colônia onde o catolicismo era a religião
obrigatória.
— Para sobreviver no Brasil
colonizado pelo branco europeu, o candomblé teve de se adaptar como uma
religião secundária — explica Marília. — Para não serem descobertos e
reprimidos pelos senhores, os escravos, em seus rituais religiosos, fingiam
adorar um santo da Igreja, mas, na verdade, estavam cultuando o orixá
correspondente àquele santo. São Jorge é Ogum, o orixá da guerra, do combate,
do ferro e da metalurgia.
Para Ivan Manoel, a nova
identidade do santo foi fundamental para consolidá-lo como um dos santos mais
populares do Brasil.
— O sincretismo religioso
assegurou o culto a São Jorge. Ele foi uma das figuras mais grandiosas do
candomblé — avalia. — Também vale destacar como a imagem do cavaleiro contra um
monstro pode ser interpretada de inúmeras formas. Na minha opinião, o dragão de
São Jorge é o imperador romano que lutou contra o cristianismo.
Até os comunistas
brasileiros criaram uma versão para a figura sagrada. Nos anos 1930, o
comissário de guerra soviético Leon Trotsky foi caricaturado como São Jorge,
enfrentando o dragão da contrarrevolução. Ele aparece montado em um cavalo
branco, usando uma capa vermelha e, em seu escudo, há o desenho da foice e do
martelo, que juntos formam o símbolo do comunismo. Na correspondência
clandestina no país, seus partidários o chamam de Ogum. Foi mais uma das muitas
facetas de São Jorge, o mártir cuja espada cortou todas as tentativas de
desconstruí-lo.
Leia mais sobre esse assunto
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