A questão do respeito à liturgia da
Igreja tem atualmente suscitado vários debates sobre temas como procissão,
adoração ao Santíssimo Sacramento, cantos, missas tridentinas, manifestação de
carismas extraordinários etc. Obviamente que tais temas não estão todos ao
mesmo nível ou no mesmo grau de valor, quando se refere a uma maior ou menor
adequação às normas litúrgicas da Igreja. É o caso do questionamento que se
pode levantar sobre bater palmas durante a celebração da missa.
Antes de se tentar fazer brevemente
aqui algumas considerações no tocante ao respeito da liturgia da Igreja, o que
se pode dizer sobre as palmas em si?
Já há muito que, em tantas culturas
– por que não dizer em todas, mesmo se com maior ou menor frequência - se
expressa os afetos com as palmas. Para manifestar entusiasmo e motivação ou
para entusiasmar e motivar, as palmas são usadas de forma rítmica ou não.
Grandes aclamações de
personalidades públicas, apresentações artísticas ou o simples fato de
reconhecer algo bem feito, são acompanhados de palmas como sinal de ovação,
reverência ou reconhecimento. O ritmo de cantos e danças muitas vezes se inicia
com palmas ou as gera. E até mesmo uma boa e sã gargalhada às vezes é completada
com palmas, na exteriorização corporal das emoções. Este gesto que consiste em
bater uma mão contra a outra, produzindo um som não é tão anódino quanto
parece. Ademais, muito se poderia discorrer sobre quanto significado há as
mãos.
No contexto bíblico, deparar-se-á
com um grande número de expressões que empreguem a “mão”, muitas vezes
personificada, a fim de designar a intenção mais profunda do próprio sujeito
agente. Assim as mãos são levantadas para exprimir a atitude de oração (cf. 2Mac
3,20; 1Tm 2,8) Encontrar-se-ão as palmas
de aclamação a um rei (cf. 2R 11,11); o profeta bate palmas enquanto profetiza
(cf. Ez 21,19); há também as palmas de censura e reprovação dos atos (cf. Ez
6,10; Lm 2,15); e até Deus bate palmas (cf. Ez 21,22)! Num hino de louvor, a
natureza é convidada a exultar de alegria com as palmas (cf. Is 55,12; Sal
97,8), antropomorfismo que revela suas
verossímeis raízes na liturgia do povo. Diz o salmo 46 (tradução da Bíblia Ave
Maria):
- Ao mestre de canto. Salmo
dos filhos de Coré. Povos, aplaudi com as mãos, aclamai a Deus com vozes
alegres, porque o Senhor é o Altíssimo, o temível, o grande Rei do universo.
Ele submeteu a nós as nações, colocou os povos sob nossos pés, escolheu uma
terra para nossa herança, a glória de Jacó, seu amado. Subiu Deus por entre
aclamações, o Senhor, ao som das trombetas. Cantai à glória de Deus, cantai;
cantai à glória de nosso rei, cantai. Porque Deus é o rei do universo;
entoai-lhe, pois, um hino! Deus reina sobre as nações, Deus está em seu trono
sagrado. Reuniram-se os príncipes dos povos ao povo do Deus de Abraão, pois a
Deus pertencem os grandes da terra, a ele, o soberanamente grande.
Portanto, isto deixa entrever uma
liturgia celebrada alegremente pelo povo de Israel, com instrumentos, ritmos,
aclamações, na qual o corpo também está bastante envolvido. Tal fato se
confirma em outros textos bíblicos (cf. 1Cr 16, 42; 1Cr 23,5; 2 Cr 7, 6; 2Cr 30,21; ). Seria
fastidioso citar aqui todos os textos que mencionam os músicos, os corais, os
instrumentos e os cânticos, através dos quais a alegria da música hebraica se
traduz, dando lugar também aos afetos e sentimentos de todos os tipos e
assumindo os gestos corporais. Significativo é o texto de 2S 6,5: “Davi e toda
a casa de Israel dançavam com todo o entusiasmo diante do Senhor, e cantavam
acompanhados de harpas e de cítaras, de tamborins, de sistros e de címbalos”.
Seria difícil não imaginar o uso das palmas em tais celebrações.
Certamente que a liturgia da Igreja
não é a mesma da época de Davi e do povo de Israel. Contudo, a liturgia da
Igreja assumiu muitos traços das celebrações hebraicas, mantendo com estas uma
grande semelhança nos primeiros séculos. Na época apostólica, para a celebração
litúrgica, “se fala também de louvor de Deus, e oração de intercessão. Aqui se
vê a continuidade com a tradição sinagogal que, no culto sabatino, faz uso das
berakot (= orações de bênçãos) no contexto da leitura da Palavra de Deus e da
sua explicação; Jesus era habituado a frequentar esta liturgia na sinagoga em dia
de sábado (Lc 4,16-21)”[1].
O questionamento, que se
fará necessário, concerne não somente a história da liturgia, mas também a
história da música sacra. Pois assim como a liturgia cristã teve suas
influências sinagogais e seu desenvolvimento no encontro com outras culturas,
assim também a música se desenvolverá e passará por diferentes estilos ao longo
da história do culto cristão. Talvez, em certos momentos da história, um
determinado estilo musical tenha sido mais valorizado na liturgia do que
outros. Porém, na Constituição Dogmática Sacrosanctum Concilium, percebe-se
que, ainda que o canto gregoriano tenha uma grande estima, não há nenhum estilo
musical concreto que possa ser mais sacro do que outros, aprovando e aceitando
“no culto divino todas as formas autênticas de arte, desde que dotadas das qualidades
requeridas” (SC 112).
Ainda que haja palmas para
diferentes situações, como já foi acima mostrado, é no âmbito da música
litúrgica que justamente elas poderão assumir uma razão de ser e um sentido, os
quais não ofendem a liturgia da Igreja em suas rubricas, e menos ainda o centro
do mistério celebrado. Ademais isto também não significa que se estaria a
forçar uma introdução das palmas no rito romano ou que se precisaria de uma
autorização expressa, haja vista que os documentos da Igreja já dão uma margem
para tanto.
COMO SE JUSTIFICARIA ISTO?
Já no início da parte da SC
que trata da música (cf. 112) percebemos esta abertura a uma forma musical que,
por seus aspectos culturais que englobam o ritmo e os gestos corporais, seria
propensa a admitir as palmas em certas partes da celebração da missa, ato
litúrgico por excelência. Quando o documento Musicam Sacram, de 1965, trata da
participação do povo na liturgia ele diz o seguinte no n. 15:
ESTA PARTICIPAÇÃO:
a) Deve ser antes de tudo
interior; quer dizer que, por meio dela, os fiéis se unem em espírito ao que
pronunciam ou escutam e cooperam com a graça divina.
b) Mas a participação deve
ser também exterior; quer dizer que a participação interior deve expressar-se
por meio de gestos e atitudes corporais, pelas respostas e pelo canto.
Eduquem-se também os fiéis no sentido de se unirem interiormente ao que cantam
os ministros ou o coro, de modo que elevem os seus espíritos para Deus,
enquanto os escutam.
Seria um erro pensar que dentre
estes gestos corporais estariam as palmas, particularmente em certas culturas,
nas quais os gestos assumem um papel relevante? Parece que a CNBB entende que
não. Para uma cultura mestiça como a do povo brasileiro, repleta de elementos
indígenas, europeus e africanos, o texto de um estudo da CNBB (n. 79) admite
palmas como fazendo parte da liturgia. Por exemplo, para as aclamações, como
participação do povo, devem ser incentivadas e mais variadas, através do canto,
das palmas ou dos vivas. Ou ainda, para a acolhida inicial, “oportunamente,
gestos da assembléia poderão intervir, por exemplo, acolher-se mutuamente
através de saudações aos vizinhos, bater palmas, dar vivas em honra ao Cristo
Ressuscitado, a Nossa Senhora, ao Padroeiro(a), em dia de festa etc”.
Poder-se-ia objetar afirmando que os
textos não tratam da música. Todavia, quando se procura interpretar o que o
texto da SC diz nos números 118 e 119, deduz-se que haveria a possibilidade de
um acompanhamento do canto com as palmas. No n. 118, o Concílio afirma que se
deve promover “muito o canto popular religioso, para que os fiéis possam cantar
tanto nos exercícios piedosos e sagrados como nas próprias ações litúrgicas,
segundo o que as rubricas determinam”.
Entenda-se o canto popular religioso
como aquele que assume os traços da música popular de um país, com seus ritmos,
harmonias e melodias característicos. Ora, em várias tradições populares da
música brasileira e de tantos países, encontra-se o acompanhamento das palmas. O número seguinte do
documento acrescenta: “há povos com tradição musical própria, a qual tem
excepcional importância na sua vida religiosa e social. Estime-se como se deve
e dê-se-lhe o lugar que lhe compete, tanto na educação do sentido religioso
desses povos como na adaptação do culto à sua índole, segundo os art. 39 e 40”.
Portanto, o ensinamento conciliar já previa e incluía as diferentes tradições
musicais - reconhecidas pelas autoridades eclesiásticas territoriais
competentes - que certamente englobam variadas formas de expressões corporais.
Por outro lado, há uma grande
necessidade de formação litúrgica, a fim de evitar os excessos, como por
exemplo, as palmas em momentos indevidos ou o incentivo exagerado às mesmas.
Uma boa formação litúrgica atentará para o bom senso, à harmonia, à sobriedade
e ao decoro, de tal forma que as manifestações exteriores na participação da
celebração da missa não sobrepujem a adesão e as atenções interiores requeridas
como primordiais.
Desde modo, conhecendo bem
as características dos cantos que acompanham as distintas partes da celebração
eucarística, evitar-se-á, por exemplo, palmas acompanhando o canto de comunhão,
cuja índole é mais meditativa. Mesmo com a aprovação da CNBB, também as
aclamações com palmas devem ser empregadas com parcimônia. Melhor seria
reservá-las para os domingos “festivos”, solenidades ou nos momentos de grandes
encontros de uma diocese.
Assim como os músicos
recebem uma formação musical no tangente à unidade e harmonia do conjunto, toda
a assembléia também pode e deve estar atenta à este aspecto no tocante às
palmas. Normalmente, um instrumento de ritmo tem seus momentos fortes e fracos,
assim como os outros instrumentos. Todos assumem uma justa medida de
intensidade e volume que é prevista pela partitura. Isto também faz parte da
harmonia e da estética musical. Quando se trata de palmas, que compõem o
conjunto celebrativo-musical, o discurso é análogo.
Portanto, será de grande
proveito para a beleza da celebração litúrgica uma educação quanto ao emprego
das palmas. Será, algumas vezes, uma situação de crescimento mútuo, haja vista
que se um irmão ou irmã está batendo palmas exageradamente, de modo
descompassado ou em momentos inoportunos, uma gentil correção será oportuna.
Por fim, resta lembrar que
as palmas não são obrigatórias e por isso nunca devem ser impostas a ninguém. O
acolhimento de uma comunidade velará para que todos se sintam à vontade e não
em situações desconfortáveis durante as celebrações. A caridade manifestada no
acolhimento e no desejo de fazer os outros participarem ativamente da
celebração, deve caminhar junto com a necessidade de acolher o mistério vivido
e celebrado através do culto oferto na e pela Igreja.
Pe Rafael Cerqueira
Fornasier
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
GIGLIONI, Paolo,
Introduzione alla liturgia, cap. 4, in Congregação para o Clero – Smart CD
(Biblioteca-Liturgia) 2001. Tradução nossa.
Ver também n. 30 da SC.
Cf. CNBB, Animação Litúrgica
no Brasil, estudos n. 79, 1984, n. 209.
Ibid., n. 244
Nenhum comentário:
Postar um comentário