O Papa Francisco concedeu
entrevista ao jornal El País
Na sexta-feira, enquanto
Donald Trump tomava posse em Washington, o papa Francisco concedia no Vaticano
uma longa entrevista ao EL PAÍS, em que pedia prudência ante os alarmes
acionados com a chegada do novo presidente dos Estados Unidos.
“Santidade, o que resta,
depois de quase quatro anos no Vaticano, daquele padre das ruas, que chegou de
Buenos Aires a Roma com a passagem de volta no bolso?”, foi a primeira pergunta
do EL PAÍS.
O Papa respondeu: “Que
continua sendo das ruas. Porque assim posso sair na rua para cumprimentar as
pessoas nas audiências, ou quando viajo… Minha personalidade não mudou. Não
estou dizendo que me propus a isso: foi espontâneo. Não, aqui não é preciso
mudar. Mudar é artificial. Mudar aos 76 anos é se maquiar. Não posso fazer tudo
o que quero lá fora, mas a alma das ruas permanece, e vocês a veem”.
“Nos últimos dias de
pontificado, Bento XVI disse sobre seu último período à frente da Igreja: “As
águas desciam agitadas, e Deus parecia estar dormindo”. Também sentiu essa
solidão? A cúpula da Igreja estava dormindo em relação aos novos e antigos
problemas das pessoas?”, perguntou o EL PAÍS.
O Papa respondeu: “Eu,
dentro da hierarquia da Igreja, ou dos agentes pastorais da Igreja (bispos,
padres, freiras, leigos…), tenho mais medo dos anestesiados do que dos que
estão dormindo”. Daqueles que se anestesiam com o mundanismo. Então, negociam
com o mundanismo. E isso me preocupa… Que… Sim, tudo está quieto, está
tranquilo, se as coisas estão bem… ordem demais. Quando se lê os Atos dos
Apóstolos, as Epístolas de São Paulo, lá havia confusão, havia problemas, as
pessoas se movimentavam. Havia movimento e havia contato com as pessoas. O
anestesiado não tem contato com as pessoas. Defende-se da realidade. Está
anestesiado. E hoje em dia existem tantas maneiras para se anestesiar da vida
cotidiana, não? E, talvez, a doença mais perigosa que um pastor possa ter venha
da anestesia, e é o clericalismo. Eu aqui, e as pessoas lá. Você é o pastor
dessas pessoas! Se não cuidar dessas pessoas e deixar de cuidar dessas pessoas,
feche a porta e se aposente.”
“Os problemas enfrentados
por Bento XVI no final de seu pontificado e que estavam naquela caixa branca
que ele lhe entregou em Castel Gandolfo. O que havia lá dentro?”, perguntou o
EL PAÍS.
“A normalidade da vida da
Igreja: santos e pecadores, decentes e corruptos. Estava tudo ali! Havia gente
que tinha sido interrogada e está limpa, trabalhadores… Porque aqui na Cúria há
santos, viu? Há santos. Gosto de dizer isso. Porque fala-se com facilidade da
corrupção da Cúria. Há pessoas corruptas na Cúria. Mas também muitos santos.
Homens que passaram a vida inteira servindo às pessoas de maneira anônima,
atrás de uma mesa, em um diálogo ou em um escritório para conseguir… Ou seja,
dentro dela existem santos e pecadores. Naquele dia, o que mais me impressionou
foi a memória do santo Bento. Que me disse: “Olha, aqui estão as atas, na
caixa”. Um envelope com o dobro deste tamanho: “Aqui está a sentença, de todos
os personagens.” E aqui, “fulano, tanto”. Tudo de cor! Uma memória extraordinária.
E a conserva, a conserva.”
“Quais são suas maiores
preocupações com relação à Igreja e, em geral, com a situação mundial?”,
perguntou o EL PAÍS.
O Papa respondeu: Com
relação à Igreja, eu diria que a Igreja não deixe de estar próxima das pessoas.
Que procure sempre estar perto. Uma Igreja que não é próxima não é Igreja. É
uma boa ONG. Ou uma boa organização piedosa de pessoas boas que fazem
beneficência, se reúnem para tomar chá e fazer caridade. Mas o que identifica a
Igreja é a proximidade: sermos irmãos próximos. Porque a Igreja somos todos.
Então, o problema que sempre existe na Igreja é que não haja proximidade. E
proximidade significa tocar, tocar no próximo a carne de Cristo. É curioso:
quando Cristo nos diz o protocolo com o qual seremos julgados, que é o capítulo
25 de Mateus, é sempre tocar o próximo. “Tive fome, estive preso, estive
doente…”. Sempre a proximidade para ver a necessidade do próximo. Que não é só
a beneficência. É muito mais do que isso. Depois, com relação ao mundo, minha
preocupação é a guerra. Estamos na Terceira Guerra Mundial em pedacinhos. E,
ultimamente, já se fala de uma possível guerra nuclear como se fosse um jogo de
cartas. E isso é o que mais me preocupa. Do mundo, preocupa-me a desproporção
econômica: que um pequeno grupo da humanidade tenha mais de 80% da riqueza, com
o que isso significa na economia líquida, onde no centro do sistema econômico
está o deus dinheiro e não o homem e a mulher, o humano! Assim, cria-se essa
cultura de que tudo é descartável.
“Santidade, com relação aos
problemas do mundo que o senhor mencionava, exatamente neste momento Donald
Trump está tomando posse como presidente dos EUA. E o mundo vive uma tensão por
esse fato. Qual a sua consideração sobre isso?”, perguntou o EL PAÍS.
O Papa respondeu: “Veremos o
que acontece. Mas me assustar ou me alegrar com o que possa acontecer, nisso
acho que podemos cair numa grande imprudência – sermos profetas ou de
calamidades ou de bem-estares que não vão acontecer, nem uma coisa nem outra.
Veremos o que ele faz e, a partir daí, avaliaremos. Sempre o concreto. O
cristianismo, ou é concreto ou não é cristianismo. É curioso: a primeira
heresia da Igreja foi logo depois da morte de Cristo. A heresia dos gnósticos,
que o apóstolo João condena. E era a religiosidade spray, como a chamo, do não
concreto. Sim, eu, sim, a espiritualidade, a lei… mas tudo spray. Não, não.
Coisas concretas. E do que é concreto tiramos as consequências. Nós perdemos
muito o senso do concreto. Outro dia, um pensador me dizia que este mundo está
tão desorganizado que falta um ponto fixo. E é justamente o concreto que nos dá
pontos fixos. O que você fez, o que disse, como age. Por isso eu, diante disso,
espero e vejo.”
AGÊNCIAS DE NOTÍCIAS 22 DE JANEIRO DE 2017
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