A FLAUTA DO MONGE INOCENTE -
Jean de Quercy
Sabeis por que todos os anos multidões de
peregrinos vão rezar em Dégagnazès? É que antigamente ocorreram lá as grandes
coisas que eu vos contarei.
No bosque, no local em que os mercadores
montam suas barracas no dia de peregrinação, havia um convento com trinta
monges vestidos todos de branco. Na realidade eram trinta e um, mas eu disse
trinta, como todo mundo, porque o trigésimo primeiro não contava. Era um
mongezinho não maior que uma criança, todo corcunda e um tanto coxo, conhecido
como ‘o inocente’, por causa da sua simplicidade.
Não falava com ninguém, mas sabia-se que era
bom, porque tinha os olhos doces e os animais gostavam dele. Era o pastor do
convento, e todas as manhãs, ao raiar do dia, saía do estábulo, onde dormia ao
lado das suas ovelhas, e com elas atravessava os bosques floridos, à procura
dos locais de pastagem.
O monge amava suas ovelhas, mas amava ainda
mais sua flauta. Era uma flauta de bambu, com seis orifícios, que ele mesmo
fizera. Quando ele a levava à boca e soprava, abrindo e fechando com seus dedos
os orifícios, poder-se-ia dizer que ela falava. Eu não sei se de fato falava,
mas o certo é que todos, homens e animais, a compreendiam.
A flauta punha ordem em todas as atividades
da vizinhança. De manhã, quando o monge saía do convento tocando alegremente,
os galos que o ouviam compreendiam que era hora de cantar, e cantavam a plenos
pulmões. Os camponeses diziam: "Ouça a flauta do mongezinho. Está na hora
de levantar". E se levantavam. As flores que se fecham durante a noite
preparavam-se para abrir. O vento que dormia nos bosques começava a se mover e
sacudir as árvores, para acordar os passarinhos.
Ao meio-dia, quando o monge tocava uma música
faustosa, as ovelhas se deitavam sobre as patas cruzadas, para o descanso do
meio-dia, e os camponeses interrompiam o trabalho para comer o pão. Ao fim do
dia, quando o monge voltava ao convento tocando uma música lenta e suave, as
galinhas nos seus poleiros compreendiam que era hora de dormir, e também os
camponeses cansados iam para suas camas. Que faria a pobre Dégagnazès sem o
monge? Não saberia viver conforme a ordem e o horário que agrada ao bom Deus.
Um dia o monge não saiu do convento, e tudo
ficou de pernas para o ar. É que os ingleses devastavam a região, e os
camponeses se refugiaram no convento com todos os seus animais. Mas, como não
era fortificado, os ingleses entraram, apreenderam os seus bois, suas ovelhas,
as tapeçarias da igreja, os cálices de ouro e toda a prata do mosteiro. Mas não
ligaram para a flauta nem para as ovelhas do mongezinho. Logo que os ingleses
se foram, o monge recomeçou a sair no horário de costume, tocando sua flauta e
acordando os galos na hora em que eles deviam ser acordados.
O prior do convento ficou furioso. Era um
homem grande e vermelho, que queria ser sempre o mais forte, e que desprezava
os simples e pequenos. Como os ingleses estavam por perto e podiam voltar, ele
decidiu fortificar o mosteiro. Uma noite ele reuniu seus vinte e nove monges e
lhes mandou porem mãos à obra, para trazer as pedras da montanha negra e
quebrá-las, a fim de levantar um grande muro. Mas os monges desataram a rir:
— Precisaríamos de cem anos para esse
trabalho. Somos apenas homens, e o próprio diabo não o conseguiria.
— Veremos — disse o prior. — Voltai para
vossas celas, seus desocupados, porque eu vou à procura do diabo.
O prior não sabia aonde ir e o que fazer para
encontrar o diabo. Mas era tão orgulhoso, que estava certo de o diabo vir por
si mesmo. Compreendeis bem que nessas circunstâncias o diabo não se faria de
rogado. E realmente ele apareceu ao prior em uma clareira do bosque, vestido
com roupa cor de fogo e trazendo na mão um tridente. O prior, que tremia um pouco,
procurou dar a impressão de olhá-lo de cima.
— Então você está por aí, seu preguiçoso.
Quer dizer que você me ouviu quando pronunciei seu nome!
— Fale com menos arrogância — respondeu o
diabo. — Estamos sós, e é você que precisa de mim. E só o servirei se você me
pagar bem. O que quer que eu faça?
— Eu quero um muro que contorne o convento,
com 10 metros de altura e três de espessura, com cem seteiras e um grosso
portão de ferro. E precisa ser construído durante a próxima noite, entre o
pôr-do-sol e o primeiro canto do galo.
— Vejamos então a minha parte no negócio. Se
eu construir o muro antes do canto do galo, você me dará sua alma e a de todos
os monges que te pertencem por voto de obediência, e dos quais, portanto, você
pode dispor... Mas o que é isto que eu estou ouvindo?
Era o som da flauta, porque o mongezinho
corcunda tinha visto raiar a aurora, e começava a tocá-la enquanto saía do
convento. Como de costume, os galos acordados pela flauta se puseram a cantar,
e toda a vizinhança começou a se movimentar. O diabo ficou mal à vontade com
todo esse bulício do trabalho honesto, e não sabia mais o que dizer. Teve até
desejo de fugir, quando viu aparecer na clareira o mongezinho entre suas
ovelhas e cordeiros.
— Não gosto desse anão mal construído — disse
enfim. — Ele está com jeito de quem quer nos espionar. Eu vou-me embora, Sr.
Prior, e depois apareço na sua cela.
— Não se preocupe — disse o prior, que
desprezava o mongezinho. — Esse anão é um tolo, um fraco de espírito, mais
ignorante que os próprios animais. Ele não ouve nada, não sabe nada e não
compreende nada. Podemos concluir tranqüilamente o nosso negócio.
Parcialmente tranqüilizado, o diabo redigiu o
contrato em um pergaminho e o leu em voz alta, fazendo-o assinar pelo prior, e
em seguida desapareceu. O mongezinho havia compreendido tudo, como bem o podeis
imaginar, e ficou triste o dia todo. Até se esqueceu de tocar a flauta ao
meio-dia e à tarde, desorganizando novamente todas as atividades da vizinhança.
Quando o sol se pôs, ele viu chegar um batalhão
de diabos. Havia milhares, de todas as cores. Uns puxavam carroças carregadas
de pedras, outros cavavam as fundações, outros assentavam as pedras. Todos
permaneciam em silêncio. Não se ouvia nada, mas o muro ia se erguendo, e o
mestre dos diabos ia de um lado para outro, em uma nuvem de fogo, empurrando
com um tridente aqueles que não trabalhavam rápido. Chegou a meia-noite, o que
significa que restavam ainda três horas para terminarem o trabalho antes do
canto do galo. O muro estava quase concluído, e logo chegou a porta. O diabo
deu um assovio, e todos os outros diabos se aproximaram para assentá-la. Era um
trabalho difícil, mas os diabos, numerosos e fortes, acabaram colocando-a nos
gonzos.
O mongezinho compreendeu então que tudo
estava perdido. Olhou para a flauta e chorou, pensando que no inferno ela não
lhe valeria de nada. Mas tanto olhou para a flauta através de suas lágrimas,
que afinal teve uma idéia. Acordou sem ruído suas ovelhas e cordeiros, que o
acompanharam enquanto saía de mansinho, com a flauta à mão.
Quando os diabos, lá no alto do muro,
assentavam a última camada de pedras, ele começou a tocar a flauta, com toda
sua força e toda sua fé. As notas da flauta se espalharam pelos campos e
chegaram até os galos, que acordaram sobressaltados. E todos os galos de
Dégagnazès, com medo de terem perdido a hora, puseram-se a cantar com todas as
suas forças, e o seu canto chegou às muralhas ainda inacabadas do convento.
O diabo compreendeu que havia perdido, e
fugiu com todos os seus operários, urrando, enquanto o monge, alegre,
continuava a tocar sua flauta, como para agradecer ao bom Deus.
(Jean de Quercy, Contes de la Vieille France
– Fernand Lanore, Paris, 1945)
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