Médicos podem fazer a
diferença no atendimento à saúde básica da população, mesmo em localidades onde
não há hospitais ou postos de saúde equipados, na avaliação de Francisco
Campos, diretor do Núcleo de Educação em Saúde Coletiva da Faculdade de Medicina
da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG-Nescon).
"Essa tese de que
primeiro tem que colocar a unidade, o estetoscópio, e só depois colocar o
médico é uma tese niilista de quem não quer resolver o problema", afirma,
a respeito das críticas que apontam que o governo federal precisaria garantir
infraestrutura para o atendimento médico antes de contratar mais profissionais.
A
reportagem é de Ligia Guimarães e publicada pelo jornal Valor, 04-09-2013.
Tal conclusão defende
Campos, é fruto da experiência pessoal. O especialista dedicou a carreira a
pesquisar caminhos para aprimorar e garantir o atendimento na saúde pública,
inclusive em lugares remotos, pobres e de difícil acesso. Em 1978, implementou
um internato rural obrigatório a todos os alunos da residência médica da
faculdade mineira. Atuou no Ministério da Saúde como secretário de Recursos
Humanos, de 1985 a 1986, e de 2005 a 2010. Integrou a equipe da
Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), braço da Organização Mundial da
Saúde (OMS) para a América Latina - a mesma que firmou acordo com o ministério
para viabilizar a vinda de 4 mil médicos de Cuba na primeira etapa do programa
Mais Médicos. Hoje, é o único representante da América Latina no conselho da
Aliança Global da Força de Trabalho em Saúde, iniciativa liderada pela OMS para
levar profissionais a áreas carentes de médicos em todo o mundo.
Em entrevista ao Valor,
Campos defende a contratação de médicos estrangeiros para lugares onde não há
médicos brasileiros dispostos a trabalhar. Sobre a carreira médica, diz que o
país, se quiser cumprir o preceito constitucional de garantir saúde para toda a
população, vai precisar enfrentar tabus, como recrutar estudantes do interior
para cursos de medicina e discutir a atuação de outros profissionais da saúde
em áreas hoje exclusivas de médicos.
EIS
A ENTREVISTA.
Qual
a sua opinião sobre o desenvolvimento, até aqui, do programa Mais Médicos?
Acho que, se fizemos uma
opção por ter um Sistema Único de Saúde (SUS) para todo mundo em condições de
equidade, o governo tem que colocar profissionais nos locais, mesmo os mais
remotos. Se ele não encontra profissionais no Brasil, tem que mobilizar gente
de outros locais. O governo está cumprindo a obrigação constitucional de dar
saúde a todo mundo. Tem que ter prestação de saúde nesses locais remotos, mas
nem sempre precisa ser por um médico. Pelo ordenamento legal que temos no
momento, como a Lei do Ato Médico, fazendo com que muitas ações sejam
privativas de médicos, vamos ter que ter médicos nesses locais. Se houvesse
outro ordenamento, poderia se resolver de outra forma.
Como
o Sr. vê as críticas, segundo as quais não adianta levar médicos a lugares em
que não há infraestrutura para o atendimento?
Isso é uma das maiores
bobagens que já ouvi. Compara o valor do trabalho médico com o valor do
estetoscópio que as pessoas dizem que falta: com o que você contrata um médico,
deve comprar, talvez, dezenas de estetoscópios. E vou te dizer de maneira
jocosa: se você colocar estetoscópio lá e fizer uma unidade boa, o estetoscópio
não pede médicos. Se você colocar um médico, o médico pede estetoscópio. Em uma
unidade de saúde, muito mais importante que pedra, tijolo, estetoscópio, é o
trabalho médico. Tem unidade mal equipada sim, mas esse é um processo que é
fácil de ser resolvido. Essa tese de que primeiro tem que colocar a unidade, o
estetoscópio, e só depois colocar o médico. é uma tese niilista de quem não
quer resolver o problema.
O
médico passa a atuar como um planejador, um estrategista da saúde no local?
Se o médico estivesse em uma
unidade médica sem estetoscópio, não ia poder trabalhar. Ele tem que pedir ao
prefeito, ao gestor municipal, que compre estetoscópio, que tenha ambulância
para levar as pessoas, mas ele vai organizar esse processo. O contrário não acontece.
Não adianta estetoscópio sem médico. Se eu tiver que fazer um "ovo ou
galinha", o que vem primeiro, infraestrutura ou médico? Acho que o médico
puxa a infraestrutura.
Acompanhando
as discussões sobre o Mais Médicos, o que se vê é que o debate está ficando
cada vez mais polarizado, radicalmente a favor ou contra.
É uma discussão muito
ideológica. Existe uma deficiência de médicos, não é no Brasil, é no mundo. A
população envelheceu, os cuidados se tornaram mais complexos, existe uma
carência. Ninguém consegue recrutar número superior a 10 mil médicos, mesmo
pagando bem. Você acha que 10 mil profissionais para áreas remotas, para áreas
que os outros não querem ir, fazem cócegas em uma categoria que tem mais de 400
mil profissionais? Não faz. Eu não vou, e não quero que o outro vá, é mais ou
menos isso.
Qual
o papel da saúde básica, que também tem carência de profissionais, na solução
dos problemas da saúde brasileira?
A reunião de Alma-Ata
[Conferência Internacional sobre Cuidados Primários de Saúde], em 1978, trouxe
o conceito da atenção primária e fez-se o compromisso de garantir saúde para o
mundo inteiro até o ano 2000, mas evidentemente não chegamos lá. Desde então,
todo o conceito de peritos mundiais é de que uma boa atenção básica para saúde
(no Brasil usamos básica, porque primária poderia ser entendido como de baixa
qualidade), em geral, resolve 80% a 85% das demandas espontâneas que chegam ao
consultório.
Que
tipo de atendimento abrange a saúde básica, além de prevenção?
Promoção da saúde,
acompanhar nascimento e desenvolvimento, consultas básicas, pequenas cirurgias,
como o indivíduo que fez um corte e precisa dar ponto, drenar um abcesso. O
fato de no Brasil existirem leis de exercício profissional que são como
loteamentos, com atos exclusivos para cada profissão, faz com que essa coisa
seja mais rígida do que em outros países. Existe uma tendência muito grande no
mundo, menos nos EUA, de ter profissionais que podem resolver parte dos
problemas. Falar isso no Brasil é pecado, mas é a história do "physician
assistant", o paramédico, ou o que na China se chama "village
doctors". É um profissional que não seria um médico. No conselho de enfermagem
tem técnico em enfermagem. Na medicina não há profissionais subalternos, que
podem ter formação diferente, mas dão conta de parte - não de todos - dos
cuidados da atenção básica, que podem ser resolvidos com nível menos complexo
de formação.
Realizar
parto faz parte do atendimento em saúde básica?
Defendemos que os partos
sejam institucionalizados e feitos em hospital. Entretanto, há localidades em
que o parto normal pode ser parte da atenção básica, em lugar onde não há
hospital.
Olhando
o programa como um todo, o sr. vê pontos que poderiam ser aprimorados?
Temos de deixar de
transformar algumas discussões em tabu. Provavelmente, depois do resultado do
Mais Médicos - programa que por sinal eu apoio, caso não tenha ficado claro -,
esses tabus serão discutidos. Alguns países recrutam profissionais em áreas
rurais, porque há a tese de que essas pessoas não teriam tanto problema em
retornar a esses lugares [quando forem médicos]. Essa discussão é um tabu e
deveríamos enfrentar. Outra discussão que deveríamos enfrentar é ter ou não uma
outra categoria, que não seja um médico pleno. Acho que o governo está fazendo
a melhor tentativa que pode para, dentro do marco legal e dentro da
Constituição, que diz que a saúde é para todos, enfrentar o problema com o que
está disponível, que é ter médico da forma que os médicos brasileiros são. Se
não resolver o problema, vai ter que começar a se pensar em coisas mais fortes.
Se você pensar bem, a política de cotas é isso. Você poderia ter,
eventualmente, recrutamento de estudantes de medicina de regiões rurais,
remotas, e essas pessoas retornariam a essas localidades de origem, por
exemplo. Isso é repensar o marco legal da profissão. Tem uma medida dos Mais
Médicos que é importante, que é colocar faculdades de medicina em regiões mais
remotas. Por que não recrutar pessoas dali? Já tivemos coragem de fazer cotas.
Ou então, desiste-se de a saúde ser universal.
Em
sua opinião, os médicos estrangeiros do Mais Médicos deveriam ser obrigados a
fazer o Revalida?
Se os médicos fizerem o
Revalida, entram na disputa dos 400 mil [médicos que trabalham no Brasil], não
sendo possível alocá-los em áreas remotas. É desejável que façam o Revalida?
Sim, dado que há carência de médicos. Por essa via, entretanto, não seriam
distribuídos para as localidades que mais precisam. E não é verdade que os
médicos não foram avaliados. Eles passaram por sistemas universitários
complexos, que avaliam, sim, a qualidade.
Têm
chamado atenção os episódios de vaias e críticas dos médicos brasileiros aos
estrangeiros. A presidente Dilma disse que vê imenso preconceito contra médicos
cubanos. Como o Sr. vê essa situação?
Xenofobia pura e da pior
qualidade. Esse tipo de preconceito não é aceitável. Não é a categoria médica,
são setores radicalizados que estão fazendo isso. Acho que a classe médica
brasileira é composta de pessoas que são elite, mas que querem salvar vidas.
Convivo com estudantes de medicina há 36 anos, nunca vi ninguém aqui na
faculdade que viesse aqui só para ganhar dinheiro. Duas mil pessoas se
inscreveram no programa. De 400 mil, menos de 0,5% do conjunto da população
médica quis ir. Para os lugares que não quiseram ir, se chamaram os
estrangeiros. Para os lugares que nem os primeiros, nem os segundos quiseram
ir, se chamaram os cubanos. Eu não quero o brinquedo, mas não quero que o meu
irmão fique com ele? Isso é coisa da pior índole possível, que acho que vem de
uma minoria, mas é lastimável.
FONTE:http://www.ihu.unisinos.br/noticias/523371-para-universalizar-saude-pais-precisa-enfrentar-tabus-diz-professor-da-ufmg
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