Espantoso relatório
"Infância sob Cerco", da Save the Children, descreve o inferno nas
cidades da Síria sitiadas pela insanidade.
A organização Save the
Children [Salve as Crianças, em inglês] foi criada em 1919 com a missão que é
explicitada em seu próprio nome: salvar crianças. Perto de completar 100 anos,
a organização internacional ainda enfrenta desafios que, de tão absurdos e revoltantes,
parecem possíveis somente em roteiros de filme-catástrofe. A Save the Children
tenta há 3 anos proteger com especial empenho as crianças das cidades sírias
sitiadas por uma guerra covardíssima, cujas dimensões reais são detalhadas no
recente relatório “Infância sob Cerco”.
O documento foi elaborado a
partir de testemunhos diretos de agentes humanitários da própria organização,
de parceiros de organizações locais, de cidadãos sírios que conseguiram fugir
das áreas sitiadas e de cidadãos sírios que ainda vivem no inferno criado e
cercado pelos combatentes que lhes negam acesso a tudo e os reduzem a mera
armas de guerra.
Confira algumas das
estarrecedoras denúncias contidas no relatório:
As crianças estão morrendo
por falta de alimentos e de medicamentos ou por causas absurdas, como a
ingestão acidental de veneno quando escavam a terra em busca de alguma coisa
para comer.
Desde 2011, quando começou a
guerra na Síria, pelo menos 11,3 milhões de pessoas foram forçadas a fugir da
própria casa: 6,6 milhões estão deslocadas dentro do país e 4,7 milhões fugiram
para o exterior – onde enfrentam outro inferno, o da crise dos refugiados, com
suas travessias marítimas quase suicidas e suas novas cercas seletivas, agora
erguidas nas fronteiras terrestres dos países europeus.
O número de sírios
assassinados nestes 5 anos de conflito armado está entre 250 mil e 400 mil.
O cerco contra civis é uma
tática de guerra desde 2011, quando o próprio governo sírio sitiou a cidade de
Dara’a e deixou sua população sem eletricidade, água e comida durante 11 dias.
O inferno não poupa sequer
hospitais e clínicas. Mesmo a poucos quilômetros da capital Damasco, há
cidades, como Moadamiyeh, nas quais os médicos são obrigados a trabalhar à luz
de velas.
Quando os postos de controle
liberam a entrada de poucos medicamentos nas áreas sitiadas, eles já estão
quase 100% inutilizáveis devido às más condições de armazenamento impostas pela
assassina burocracia de guerra.
Crianças não podem sequer
receber vacinas contra doenças evitáveis. Muitas das que morreram foram vítimas
da raiva ou de doenças da pele e do sistema digestivo, disseminadas pelo
consumo de água contaminada pelo esgoto – o fornecimento de água potável é
quase inexistente nas regiões sob cerco.
A fumaça das explosões constantes
expõe especialmente as crianças a infecções respiratórias e inflamações.
Sem outro recurso, pessoas e
famílias inteiras vagam entre escombros em busca de trapos que, depois de
fervidos, possam ser usados como “curativos”.
Na cidade de Madaya, de mais
de 400 pessoas que precisavam ser transferidas para receber tratamentos médicos
delicados, só 37 foram autorizadas.
Entre os pacientes com maior
risco de vida estão os diabéticos, hoje sem acesso à insulina, e os que
precisam de hemodiálise. Destes últimos, o relatório informa que ao menos 17
que moram ao norte de Homs foram impedidos de deixar a cidade para fazer seu
tratamento.
A falta de equipamento e
material hospitalar é descrita no documento em relatos concretos, como o dos
médicos que não podem fazer transfusões porque não há mais sangue estocado, o
de um jovem (dentre muitos) que teve de amputar uma perna por falta de material
médico e até o da criança que perdeu os dois olhos após ser atingida por
estilhaços – o hospital não tinha mais instrumentos para extraí-los.
Com a carência de médicos
(muitos foram mortos), os doentes e feridos são atendidos do jeito que é
possível por dentistas, veterinários e voluntários sem formação adequada.
A falta de médicos ameaça em
particular as crianças, que, além da desnutrição, da hipoglicemia, da
hipotermia ou de paradas cardíacas provocadas por hiper-hidratação, correm o
risco de morrer por causa de infecções relativamente simples, mas que nem
sequer são notadas pelos atendentes improvisados, apesar de sua heroica boa
vontade.
Absurdo inominável: os
remédios e equipamentos estão a muito poucos quilômetros de distância desses
enclaves do inferno, mas simplesmente não são autorizados a passar pelos postos
de controle.
O mesmo absurdo genocida
acontece com os alimentos, que estão ao lado das pessoas famintas, mas
impedidos de lhes ser entregues.
Em Yarmouk, há relatos de
pessoas que tentam sobreviver com uma única colher diária de mel. Na mesma
cidade, 40% das crianças sofrem de desnutrição – estes dados, no entanto, são
da metade de 2015 e muito provavelmente já pioraram ainda mais.
Em Deir Ezzor, o relatório
diz que muitas crianças se alimentam de capim e ração para animais.
Nas áreas rurais de Damasco,
professores informam sobre crianças que desmaiam de fome em plena aula,
privadas de comida há dias. Numa guerra que se arrasta como um monstro há 5
anos, as crianças menores jamais viram na vida uma maçã ou comeram um pedaço de
frango. Mesmo os legumes, menos escassos, chegam a faltar durante semanas a
fio. “Elas perambulam pelas ruas alteradas pela fome”, descreve um dos agentes
humanitários.
Pelo menos os bebês, em
tese, sofreriam menos, já que contam com a amamentação. Mas só em tese: as mães
não têm leite suficiente porque elas próprias passam fome.
Em outubro de 2015, a ONU
conseguiu distribuir alimentos para cerca de 10.500 pessoas – menos de 2% do
total de sírios que sobrevivem nas áreas sitiadas.
Mesmo para os pouquíssimos
que recebem ajuda, porém, a escassa comida disponibilizada oferece menos de um
quarto das calorias recomendadas como mínimo em casos de crise humanitária.
Também em 2015, foram
atendidos menos de 10% dos pedidos da ONU de acesso às áreas sitiadas, o que
mantém centenas de lugares impedidos de receber ajuda. A cidade de Darayya é um
caso assustador: sua população está sem receber ajuda desde outubro de 2012.
Mesmo quando há permissão
para que as ajudas cruzem os postos de controle nas regiões sob cerco, não há
garantia nenhuma de que elas sejam entregues a quem precisa. Em janeiro de
2016, por exemplo, comboios foram autorizados a entrar em Moadamiyeh, mas sob a
condição de que as ajudas fossem descarregadas em uma periferia controlada e
não diretamente à população.
Em julho de 2015, a ONU pôde
enfim levar ajuda à cidade de Douma após 18 meses de impedimentos, mas os
postos de controle, que estão equipados para identificar qualquer medicamento
líquido, simplesmente apreenderam os antibióticos e demais medicamentos
necessários para tratar infecções.
Valerio Neri, diretor geral
da Save the Children, informa que menos de 1% da população das áreas sitiadas
consegue receber ajuda alimentar da ONU e não mais que 3% receberam atendimento
de saúde até o momento.
2,8 milhões de crianças
estão fora da escola (antes do conflito, 99% das crianças da Síria estavam nas
salas de aula). No entanto, entre as que teoricamente ainda recebem educação
formal, os períodos de ausência podem chegar a meses ou mesmo anos devido não
só aos deslocamentos forçados das famílias, mas também aos bombardeios que
destroem as escolas.
25% das escolas (o que
equivale a 4.000 de um total de 16.000 escolas) sofreram ataques nos últimos 4
anos. 20% dos professores sírios já foram mortos
.
Assim como hospitais,
clínicas e fábricas, há também escolas improvisadas em porões e abrigos
subterrâneos, num tentativa de proteção contra os mísseis. Só em 2015, 22% dos
alvos de ataques aéreos estavam nas áreas sitiadas.
A maioria dos pais relata
que os filhos apresentam comportamentos agressivos, causados pelo medo e pela
raiva. A situação de estresse agrava ainda mais as consequências físicas e
psicológicas da desnutrição. O depoimento de uma mãe da cidade de Ghouta é
estremecedor: “Não temos mais crianças aqui. Só pequenos adultos”.
A miséria e, em muitos
casos, a morte dos pais obriga crianças sírias a trabalhar ou, pelo menos,
vagar pelas ruas lotadas de escombros em busca de algo para comer, tentar
vender ou queimar e se aquecer no inverno de temperaturas negativas.
Há relatos, no documento da
Save the Children, de crianças sexualmente abusadas e viciadas em drogas,
quando não sequestradas ou recrutadas pelos combatentes. Depoimentos de agentes
humanitários citam casos de crianças de 8 anos já forçadas a pegar em armas e
lutar como soldados das facções.
Ao finalizar o relatório, a
Save the Childen pede acesso imediato e permanente às áreas sitiadas e o fim
dos ataques a escolas, hospitais e estruturas básicas, além de apelar aos
líderes mundiais para que as ajudas humanitárias não sejam vinculadas aos
acordos de paz e, muito menos, negociadas politicamente.
FONTE: http://pt.aleteia.org/2016/03/10/famintas-e-aterrorizadas-250-mil-criancas-estao-comendo-capim-e-racao-em-meio-a-cadaveres-e-bombardeios/
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