É crucial reconhecer que as
descobertas nascem da curiosidade.
A ciência está matando as
humanidades: eu não sou o primeiro a afirmar isto, nem serei o último. Os
líderes norte-americanos estão apressando essa morte, seja por causa das suas
prioridades, seja por causa das suas opções políticas. Enquanto muitos estudiosos
provavelmente vão lamentar o fim das humanidades, outros já começaram a aceitar
estoicamente a ideia de que não vale a pena tentar salvar as ciências humanas.
John Ellis escreve sobre
este declínio:
“Os cursos que oferecem uma
visão geral das realizações da cultura ocidental foram abolidos em quase todos
os lugares; os cursos obrigatórios sobre a história e sobre as instituições
desta nação também foram deixados de lado e até as faculdades de literatura
deixaram de exigir Shakespeare como parte essencial da literatura inglesa.
Mesmo quando cursos anteriormente obrigatórios ainda são oferecidos como
opcionais, costuma-se apresentá-los a partir de uma perspectiva preconceituosa
do nosso passado cultural, o que tende a desencorajar estudos mais aprofundados”.
Ellis identifica uma
tendência real, embora não muito inteligível: ler Shakespeare pode até deixar
de ser exigido, mas quem se formar em literatura inglesa sem ter lido
Shakespeare deverá ter realizado uma tarefa hercúlea para se desviar de Hamlet,
Otelo ou Macbeth.
No entanto, mesmo que as
faculdades de ciências humanas, em seu estado atual, não desapareçam, Ellis não
responde se as ciências humanas, tais como devem ser ensinadas, ainda valem a
pena. Ele pode não ter uma resposta, mas eu gostaria de declarar um sonoro
“sim”. Hoje nós podemos assistir às ciências matando as humanidades, mas amanhã
vamos perceber que a morte das humanidades vai matar também as ciências.
Alguns anos atrás, em uma
conferência sobre a chamada “educação STEM” (ciência, tecnologia, engenharia e
matemática, na sigla em inglês), especialistas dentre os mais importante dos
EUA se reuniram para lamentar que estávamos todos “condenados”, porque “não
havia alunos suficientes interessados em ciências”. Alguns dos palestrantes tinham
credenciais impressionantes: um dos oradores era Dean Kamen, o inventor do
Segway; outro era Bill Nye, o “Science Guy”.
Eu participei de grupos de
discussões específicas naquele evento e tive a sensação de que os professores
de ciências nos EUA estavam estranhamente desconectados da maneira como as
pessoas vivem e pensam. A maioria das recomendações que eles traziam soava
banal: “Precisamos mudar a imagem cultural que as pessoas têm do cientista
nerd”, repetiam.
Mas, de forma mais ampla, o
problema com esses eventos é o seu objetivo, que, basicamente, é o de ajudar a
encontrar substitutos para os atuais trabalhadores dos ramos de exatas.
Enquanto eles se lamentavam porque “os jovens norte-americanos não estão
interessados nos trabalhos científicos que nós temos para eles”, eu não podia
deixar de me lembrar de uma passagem do livro “Coração das Trevas”, de Joseph
Conrad, para a qual William Deresiewicz tinha chamado a minha atenção em certa
ocasião:
“Ele estava empregado nisso
desde a mocidade. Era obedecido, mas não inspirava nem amor, nem medo; nem
mesmo respeito. Ele inspirava mal-estar. Isso, apenas mal-estar. Não era uma
desconfiança definida; apenas mal-estar, nada mais. Você não tem ideia do
quanto pode ser eficaz uma… uma… capacidade desse tipo. Ele não tinha nenhum
grande talento para organizar, nem para tomar a iniciativa, nem sequer para
comandar… Ele não tinha nenhum conhecimento, nem inteligência. Seu cargo tinha
chegado até ele. Por quê? Ele não originava nada, ele apenas mantinha a rotina;
só isso. Mas ele impressionava. Ele impressionava graças a essa pequena coisa,
essa impossibilidade dizer o que controlava um homem daqueles. Ele nunca
revelou esse segredo”.
Como Deresiewicz aponta,
esta é a descrição perfeita da burocracia: ela está cheia de gente que mantém o
status quo, mas não de gente que define qual é o status quo. Isso não quer
dizer que as pessoas presentes na conferência fossem todas burocratas; algumas
delas eram empreendedoras, realizadas; e tinham que ser, para terem chegado até
a posição que ocupavam. Mas elas queriam, essencialmente, treinar a próxima
geração para ocupar papéis precisos e para ter o preciso conhecimento que elas
próprias tinham.
Não é assim que o mundo
funciona. Os problemas de amanhã são sempre diferentes dos problemas de hoje.
As soluções que funcionam hoje não vão responder a todas as questões que
surgirão na próxima década. Adaptar-se ao amanhã só é possível a partir do
próprio ato de se viver em sociedade. E isto é assim porque aquele adágio
surrado que diz que “a necessidade é a mãe da invenção” é pura verdade: quanto
mais as pessoas precisarem (ou pensarem que precisam), mais elas vão inventar.
Há uma abundância de
sociedades que têm ou tiveram sistemas educacionais dedicados quase
exclusivamente à formação de estudantes de ciências e de engenharia. A China
faz isso hoje, assim como a União Soviética o fez em seu tempo. Mas, apesar de
estar na moda declamar que a escassez de habilidades em matemática e ciências
põe o nosso futuro em risco, este medo não se mostrou matematicamente
verdadeiro no passado. O Japão é bem posicionado nos rankings de desempenho
acadêmico, mas o seu desempenho econômico não tem refletido este sucesso.
Educadores e tecnocratas
acreditam, erroneamente, que já sabemos ou já pensamos em tudo de que
precisamos para o próximo boom econômico ou para a próxima revolução
científica. Tudo seria apenas questão de dar à próxima geração as respostas que
nós já temos. Acontece, porém, que é menos importante treinar as pessoas para
chegarem à próxima fronteira do que educá-las para discernirem quais são as
fronteiras que vale a pena cruzar. Teoricamente, é para isso que existe a
educação nas artes liberais. Na prática, isso nem sempre é verdade: as
faculdades de humanas tenderam de tal forma ao pensamento de grupo na geração
passada que provavelmente não melhoraram as habilidades de pensamento crítico
dos alunos nem a sua criatividade.
Mesmo que as artes liberais
já não sirvam ao seu propósito tradicional, no entanto, isso não significa que
esse objetivo não seja valioso. O valor principal de uma educação em artes
liberais é que ela incentiva o debate e a discordância. Diferentemente da
matemática, é raro que haja nas artes liberais uma resposta claramente correta.
Algumas declarações sobre arte ou literatura são mais verdadeiras do que
outras, mas nunca há uma perspectiva que possa servir indefinidamente. Isto
ocorre porque o “melhor que já foi pensado e dito” foi mudando ao longo do
tempo; mais ainda: o mundo foi mudando. O “Édipo Rei”, de Sófocles, ou o
“Frankenstein”, de Mary Shelley, não podem nos dizer definitivamente o que
devemos pensar sobre o cientificismo ou sobre o pós-humanismo, mas nos forçam a
enfrentar os cantos mais escuros do iluminismo para os quais relutamos em
voltar os olhos.
As ciências humanas,
entretanto, podem fazer mais do que nos ajudar a entender o que não deveríamos
estar fazendo: elas podem nos ajudar a contemplar o que deveríamos fazer.
Podemos estar bem longe do mundo clássico que separava as artes liberais (artes
liberales) das artes técnicas (artes serviles), mas as artes liberais ainda são
indispensáveis porque fomentam a curiosidade intelectual e o desejo de aprender
pelo prazer de aprender. As ciências também podem fazer isso: alguns cientistas
atingem marcos importantes mesmo sem a capacidade de pensar criativamente. Mas
os professores de ciências nem sempre entendem as implicações do campo em que
querem educar: se eles acreditam que podem fornecer toda a educação de que as
pessoas precisam para o futuro, eles já falharam. As ideias não são um
instrumento para o futuro, mas são, em si mesmas, objetivos dignos de busca.
As iniciativas educacionais
geralmente focam no currículo, mas promover a curiosidade intelectual não é
algo facilmente descritível num currículo. Essa tarefa depende da cultura da
escola e dos valores dos alunos e dos instrutores. De qualquer forma, nenhum
educador deveria começar a elaborar uma política educacional sem reconhecer que
a próxima revolução tecnológica não virá de pessoas que sempre têm a resposta
certa, mas de pessoas cuja aprendizagem as dotou de curiosidade intelectual
suficiente para se sentirem à vontade mesmo quando obtêm a resposta errada.
FONTE: http://pt.aleteia.org/2016/01/26/a-morte-das-ciencias-humanas-vai-matar-tambem-as-exatas-2/?utm_campaign=NL_pt&utm_source=topnews_newsletter&utm_medium=mail&utm_content=NL_pt-
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