Diante deste cenário
imaginado, cabe uma reflexão católica mais aprofundada sobre ao menos três
conceitos: trabalho, igualdade e prazer.
A Campus Party é um evento aberto
de tecnologia criado há 19 anos e que acontece em vários países da Europa e da
América, reunindo um público interessado nos avanços da técnica para conferir
novos produtos e serviços e participar de conferências e debates. Um dos
fundadores do evento é o espanhol Paco Ragageles, que, nesta semana, deu uma
palestra na edição 2016 da Campus Party Brasil, em São Paulo, cujo tema é “Feel
The Future” (“Sinta o futuro“).
Segundo Paco Ragageles, a
tecnologia deverá criar um “modelo socialista mundial” dentro de no máximo 50
anos: não existirão mais nem dinheiro, nem empregos. “A revolução tecnológica,
junto com a revolução quântica, vai mudar absolutamente tudo”, afirma ele,
citando alguns exemplos: a energia solar vai dar fim ao setor que hoje move 24%
do PIB mundial; os robôs vão realizar quaisquer trabalhos manuais; as
impressoras 3D vão imprimir de tudo; os transportes vão ser autônomos.
“Acreditamos que o limite
para o mundo que conhecemos é de 50 anos. E precisamos nos adaptar a isso se
não quisermos viver um tempo de caos (…) Eu acredito que vai ser uma era de
oportunidades. Se as máquinas trabalham, os humanos podem explorar, pesquisar,
aprender, ter tempo para o prazer e para as diversões. Não vai mais existir o
dinheiro, não precisa existir, e seremos mais humanos”.
O modelo apresentado por
Paco Ragageles é o de uma “sociedade igualitária”. Ele imagina que “a riqueza
gerada pelas máquinas deve ser distribuída igualmente a toda a sociedade. Todos
terão acesso, não só alguns (…) Vamos educar os nossos filhos não para
perseguir o sucesso, mas para descobrir o que eles querem fazer, como ser
felizes”.
Em vista dessa perspectiva,
a Campus Party propõe a criação de uma rede aberta de ideias para “entendermos
juntos como devemos evoluir”, complementa ele.
Três reflexões católicas
Diante da visão de futuro
proposta por Paco Ragageles, são oportunos alguns pontos de reflexão para nós,
como católicos, dos quais destacamos três:
1. O conceito de trabalho
Uma coisa é emprego, outra
coisa é trabalho. Sabe-se por experiência que nem todos os empregados
trabalham, assim como nem todos os que trabalham são empregados. O que Paco
prevê é o fim dos empregos, a ser absorvidos pela automação – e não o fim do
trabalho, que passaria a ser exercido de modo independente de remuneração. De
fato, o trabalho não precisa (nem deve) ser visto como um “mal necessário” ou
como mera “punição” à humanidade: pelo contrário, a doutrina da Igreja enxerga
no trabalho um valor que dignifica o homem, uma atividade na qual se concretiza
a sua vocação de amor ao próximo e de superação pessoal, a sua missão de cuidar
da Terra e “dominá-la” em sentido construtivo e responsável. Mas será que
realmente cabe esta visão do trabalho-realização num suposto cenário de
não-necessidades materiais?
Todas as pessoas, ou pelo menos a maioria delas,
compartilhariam desta visão do trabalho como fator de realização humana caso
não precisassem dele como fonte de remuneração? Ou o resultado de um suposto
mundo sem “necessidade de trabalho” seria uma acomodação generalizada de
gerações longamente alimentadas por ideais de hedonismo sem limites? Seria
sustentável um mundo sem dedicação a trabalhos não necessariamente prazerosos,
mas ainda necessários? É realista imaginar o trabalho completamente “livre” de
quaisquer aspectos de exigência, esforço e abnegação? É possível que todos
cheguem um dia a fazer somente o que lhes agrada?
2. O conceito de igualdade
A ideia de uma sociedade
humana “igualitária” é recorrente ao longo da história, mas jamais pôde
concretizar-se. O fracasso das tentativas de implantação de uma sociedade de
“todos iguais” costuma ser atribuído, pelos seus defensores, a fatores
estruturais – mas será mesmo que a sua causa não é a própria natureza humana,
que, talvez, simplesmente nunca se concretiza em dois indivíduos perfeitamente
idênticos? O fato observável, até o momento, é que não existem duas pessoas
iguais em tudo.
E os indivíduos não apenas têm características naturais e
talentos desenvolvidos em graus diferentes: mesmo as duas pessoas mais
aparentemente semelhantes aplicam “doses” diferentes de esforço, dedicação,
perseverança e excelência nas coisas que fazem. Levando-se em conta esse dado
concreto da antropologia, que tipo de “igualdade” é realmente possível em
termos de acesso dos indivíduos a bens materiais? Supondo-se que seja mesmo
implantável um cenário de “total igualdade de acesso à riqueza”, durante quanto
tempo ele seria sustentável sabendo-se que há pessoas mais esforçadas e pessoas
menos esforçadas? Como seria mantida a produção e a preservação da riqueza
disponível se todos tivessem o mesmo acesso a ela, independentemente do próprio
esforço ou da falta dele? A resposta às desigualdades provocadas pela injustiça
na sociedade atual seria um igualitarismo baseado na “nova” injustiça de se
abstraírem os diferentes graus de merecimento individual?
3. O conceito de prazer
O prazer, grosso modo,
costuma ser entendido mais imediatamente em seu sentido físico, ligado a
sensações do corpo e da mente, e, portanto, a experiências sensoriais como as
fornecidas pelo sexo, pela bebida, pela gastronomia, pelas atividades físicas
que acionam mecanismos de bem-estar, pelo descanso do corpo em contato com
cenários agradáveis de clima e ambiente, pelo uso de drogas que alteram a
percepção…
Mas será que a felicidade que todos almejam, aquela que seria
profunda e duradoura, está ligada necessariamente a experiências “sensíveis”?
Até que ponto é viável um prazer que, nesta acepção, seja duradouro? É
esperável esse tipo de cenário? Que tipo de progresso é necessário para que a
humanidade realmente aprenda a gerenciar a experiência do prazer – e da falta
dele?
FONTE: http://pt.aleteia.org/2016/01/28/criador-da-campus-party-a-tecnologia-vai-criar-um-socialismo-mundial-dentro-de-50-anos/?utm_campaign=NL_pt&utm_source=topnews_newsletter&utm_medium=mail&utm_content=NL_pt-
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